De Manaus: O que rolou na IFIP-ICEC 2024

Gabriel Ullmann
8 min readOct 14, 2024

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Callidus Academy na Universidade Estadual do Amazonas (UEA), local que sediou várias das apresentações da IFIP-ICEC 2024. 03 out 2024. Fonte: arquivo pessoal.

Pelo terceiro ano consecutivo, tive o privilégio de participar da IFIP International Conference on Entertainment Computing (IFIP-ICEC). A conferência foi realizada na Universidade Estadual do Amazonas (UEA), em Manaus, em conjunto com eventos relacionados à realidade virtual (SVR), processamento de imagens (Sibgrapi) e desenvolvimento de jogos (Sbgames). Durante quatro dias, tive a oportunidade de conversar com desenvolvedores e pesquisadores de vídeo games do mundo todo e entender os atuais problemas, soluções e tendências da área.

Neste post, comento uma pequena amostra dos artigos, workshops e tutoriais apresentados na IFIP-ICEC, focando em três aspectos do entretenimento digital que, em minha opinião, receberam destaque este ano: a produção de conteúdo utilizando IAs generativas, a implementação de mecanismos de acessibilidade em VR e as mais novas aplicações de VR na indústria e no mundo do trabalho. Caso tenha curiosidade de ir além do que está neste post, você pode ler vários dos artigos na íntegra aqui.

O uso do VR para tomada de decisão

Utilizando o simulador SVT20, que roda no Meta Quest 2 e utiliza 2 controles encaixados em uma réplica de fuzil M16. Apresentado por Raphael de Souza e Almeida (esq.). 02 out 2024. Fonte: arquivo pessoal.

Embora no imaginário popular as aplicações de realidade virtual, aumentada e estendida ainda sejam muito associadas aos jogos, os trabalhos desta edição do ICEC destacaram amplamente o uso dessas tecnologias no apoio à tomada de decisão na indústria, especialmente em áreas como modelagem e design. Em um dos tutoriais de abertura, Dr. Ingrid Winkler (Centro Universitário SENAI CIMATEC — Brazil) apresentou exemplos do uso de VR na indústria automotiva, permitindo que montadoras capturem a posição dos olhos dos usuários durante um “test drive virtual”, identificando quais elementos do interior do veículo atraem mais atenção.

Além disso, artistas 3D, designers e engenheiros podem se beneficiar de sessões de design cooperativo em VR, onde é possível visualizar equipamentos virtuais, desmontá-los peça por peça e sugerir melhorias. Essa abordagem não só promove uma maior colaboração entre as equipes de engenharia e design, como também torna o trabalho remoto mais imersivo, criando a sensação de que todos estão presentes na mesma sala.

Há também um crescente interesse do mundo militar pelo uso de experiências interativas para tomada de decisão e treinamento. Por exemplo, Raphael de Souza e Almeida (PUC-Rio) apresentou no SVR dois simuladores utilizados pela Marinha do Brasil: o SVETT, para estudo de terreno e o SVT20, para treinamento de tomada de decisão em situações de stress. No SVETT, você pode “sobrevoar” uma área utilizando seu avatar em realidade virtual, visualizar o relevo em 3D e desenhar linhas sobre ele de maneira colaborativa, permitindo o planejamento, por exemplo, de movimentações de tropas. Embora ainda esteja em desenvolvimento, o SVETT já foi utilizado na prática durante as enchentes deste ano no Rio Grande do Sul para planejamento de auxílio e resgate.

Enquanto no SVETT é desenhado para favorecer a reflexão um pouco mais contemplativa, o SVT20 foca na tomada de decisão rápida. A experiência consiste em um treinamento de tiro ao alvo no qual o jogador tem apenas um segundo para definir se a silhueta em preto-e-branco que aparece a sua frente é amiga (por exemplo, uma pessoa com as mãos para cima) ou inimiga (por exemplo, uma pessoa apontando um revólver) e com base nisso decidir se atira (ou não). Além da tomada rápida de decisão, é preciso também, é claro, boa pontaria para acertar o alvo, e foi aí o meu problema. Na primeira seção de jogo, identifiquei corretamente 7 amigos, 2 inimigos e ignorei pelo menos uma dúzia de alvos por não ter conseguido me decidir em tempo suficiente. De qualquer forma, a experiência foi divertida e me fez perceber o quanto a imersão proporcionada pelo VR pode ser crucial no futuro para nos preparamos melhor para situações de alto risco e que exigem resposta rápida.

Os prós e contras da arte gerada por IAs

Dr. Maria Andreia Formico Rodrigues (Universidade de Fortaleza) explicando a transformação de expressões faciais através de IA. 03 out 2024. Fonte: arquivo pessoal.

Com a emergência de modelos de IA generativa como DALL-E, Stable Diffusion e ChatGPT nos últimos anos, a discussão sobre geração de arte — em forma de imagem, áudio ou narrativa — tem se tornado muito frequente entre desenvolvedores e pesquisadores de vídeo games. Embora esses sistemas de IA tenham um potencial enorme para acelerar e democratizar a produção artística, muito se discute sobre sua eficácia, e também sobre questões éticas e de copyright. Um dos palcos mais interessantes para essa discussão foi o SVR, em especial o keynote de Pablo Bioni entitulado AI Overview — Strategy and Applications on Digital Entertainment.

Durante o keynote, Bioni compartilhou suas experiências trabalhando em projetos de efeitos visuais para grandes empresas, tais como a TV Globo. Ele mostrou alguns exemplos de como utilizou modelos de IA generativa para, por exemplo, extrair a voz de uma atriz de um vídeo antigo e gravar novas falas para ela, permitindo uma re-dublagem do original. Outro exemplo foi a criação de animações com expressões faciais realistas baseadas em imagens estáticas. Bioni deixou claro, contudo, que frequentemente as IAs não entregam de primeira o resultado imaginado pelo artista e, portanto, retoques manuais nas imagens utilizando Photoshop e outras ferramentas de edição foram necessários.

Neste aspecto, perguntei a Bioni ao final da apresentação se em algum projeto ele sentiu que teve que “brigar” com a IA extrair dela um determinado resultado, e como ele lidou com esse tipo de problema. Segundo ele, nesses casos a melhor abordagem é deixar as ferramentas e modelos comerciais de lado e treinar um modelo mais especializado, utilizando, por exemplo, o Llama, modelo open-source da Meta AI. Em minha opinião, implementar projetos sem o uso de IAs generativas pode acabar sendo mais produtivo do que “bater cabeça” com elas, pelo menos no contexto de Engenharia de Software. Se essa é de fato a melhor solução, contudo, só o tempo dirá.

A IFIP-ICEC teve pelo menos uma dezena de artigos dedicados à geração de conteúdo para jogos utilizando IA. Um dos projetos que mais chamou minha atenção foi o PatternTeller, descrito pelo Dr. Edirlei Soares (Universidade de Breda, Países Baixos) e seus colegas no artigo A Pattern-oriented AI-powered Approach to Story Composition. Através do uso de uma interface web, o PatternTeller permite que os usuários gerem narrativas ilustradas com base em uma premissa (por exemplo, uma frase) e um padrão literário (por exemplo, o famoso Hero’s Journey).

Além de criar conteúdo “do zero”, modelos de IA generativa podem também ser usados para melhorar ou transformar conteúdo já existente. Por exemplo, no artigo Breast Cancer Diagnosis Through Serious Gaming: Clinical Reasoning, AI-Driven Character Morphing, and Emotional Engagement, Rafael Barbosa e Dr. Maria Andreia Formico Rodrigues (Universidade de Fortaleza) descrevem como eles geraram um total de 240 expressões faciais para as personagens do jogo a partir de 16 expressões iniciais desenhadas por um artista. Para atingir este resultado, eles aplicaram técnicas como interpolação linear e Triangulação de Delaunay para mover as sobrancelhas e lábios das personagens de maneira fluída.

Os obstáculos ao design acessível para todos

Screenshot do jogo “Escape-INF-VR”, desenvolvido por Angelo Coronado, Sergio Carvalho e Luciana Berretta (Universidade Federal de Goiás). Fonte: artigo.

Assim como no ano passado, o tema da acessibilidade foi abordado em diversos workshops e artigos. Contudo, em minha opinião, desta vez, as discussões foram mais ricas e profundas, principalmente devido à maior participação de pessoas com deficiência. Um exemplo disso foi o workshop “Game Accessibility Research Summit”, onde tivemos a oportunidade de ouvir e debater com Daniela Tavares (Universidade Federal Fluminense), doutoranda em Computação, deficiente visual e dedicada à pesquisa sobre inclusão digital de pessoas com deficiência visual.

Durante as discussões em grupo no workshop, Daniela explicou alguns motivos por trás da baixa adoção de mecanismos de acessibilidade em jogos e aplicações em geral. Segundo ela, um dos principais fatores é a falta de representatividade de pessoas com deficiência em posições de liderança e tomada de decisão na indústria e na academia. Como resultado, o tema permanece pouco explorado e enfrenta barreiras políticas dentro das organizações. Por exemplo, mesmo que um designer sugira uma implementação acessível, se seu superior não achar que a implementação é pertinente ou tem um bom custo-benefício, ela pode acabar sendo engavetada.

Outra questão é a falta de conscientização. Muitos designers e desenvolvedores simplesmente não consideram a acessibilidade, pois desconhecem os padrões existentes (como o W3C WCAG, para aplicações web) e não têm convivência com pessoas com deficiência. Nesse sentido, diversos participantes do workshop sugeriram que o investimento em educação sobre acessibilidade nas empresas, aliado à implementação de práticas de co-design, pode trazer grandes benefícios. Se quisermos jogos e aplicações mais inclusivos, é fundamental que as pessoas com deficiência estejam envolvidas não apenas no playtesting, mas também em todas as etapas do processo, desde a concepção até a implementação.

O tópico acessibilidade também brilhou na Student Game Competition que ocorre em conjunto com a IFIP-ICEC. Os organizadores da competição premiaram com menção honrosa o jogo Escape-INF-VR: An Accessible VR Escape Game Proposal for Blind Individuals, desenvolvido por Angelo Coronado, Dr. Sergio Carvalho e Dr. Luciana Berretta (Universidade Federal de Goiás). Através de adaptações como a descrição de objetos próximos à personagem via TTS (síntese de voz) e a indicação da direção para a qual a personagem está voltada (como norte, sul, etc.), os pesquisadores criaram um “escape game” — jogo no qual você precisa buscar pistas e resolver puzzles para escapar de uma sala — acessível tanto para pessoas deficientes visuais quanto videntes. É um excelente exemplo de design inclusivo, ou “design for all”.

Considerações finais

Todo fim de conferência me deixa um pouco reflexivo, assim como todo final de ciclo. Esta edição da ICEC marcou o final do meu mestrado, e eu não poderia estar mais contente com os resultados. O artigo que apresentei, SyDRA: An Approach to Understand Game Engine Architecture, baseado em minha dissertação de mestrado, ganhou o prêmio de melhor artigo da journal track. Estou muito feliz pelo reconhecimento e portanto não posso deixar de agradecer meus coordenadores Dr. Yann-Gaël Guéhéneuc e Dr. Fabio Petrillo, e meus colegas Dr. Nicolas Anquetil e Dr. Cristiano Politowski por todo apoio e amizade nestes últimos 2 anos.

Recebi a premiação de “Best Journal Paper”, entregue por Pablo Figueroa (centro) e Angelo Di Iorio (dir.). 03 out 2024. Fonte: arquivo pessoal.

Além de significar muito para mim, a realização da ICEC, SVR, Sibgrapi and Sbgames foram muito significantes também:

  • Para o Amazonas: A Universidade Estadual do Amazonas (UEA) ofereceu uma excelente estrutura de salas de aula e auditórios para os quatro eventos, mostrando a força da região Norte no meio acadêmico e tecnológico. Deixo meu agradecimento especial aos voluntários da UEA que nos guiaram pelo campus e foram muito prestativos em todos os eventos.
  • Para o Brasil: Grande parte dos artigos, jogos e experiências interativas apresentados este ano foram de autoria de pesquisadores brasileiros, muitos deles trabalhando em universidades públicas brasileiras. Isso mostra a força da área de jogos no nosso país, que pouco a pouco se torna mais relevante tanto na academia quanto na indústria.
  • Para o mundo: Em 23 edições da IFIP-ICEC, esta foi apenas a segunda a ocorrer no Brasil e a quinta a ocorrer fora do Norte global (2x no Brasil, 2x na China e 1x no Peru). Espero ver esta conferência mais vezes no Brasil, América Latina, e também em outros lugares onde há muita ciência de qualidade, mas, infelizmente, poucos eventos de alcance internacional.

A edição 2025 da IFIP-ICEC será em Tóquio, no Japão. Até lá!

Referências

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Gabriel Ullmann

Pesquisador de Engenharia de Software, sempre garimpando por coisas interessantes no código de video games e apps em geral. Atualmente em Montreal, Canada.