O que rolou no ReAnimate 2024 (parte 1)

Gabriel Ullmann
6 min readJul 29, 2024

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Coleção de fitas de jogos para ZX Spectrum, expostos durante o ReAnimate 2024. Fonte: arquivo pessoal.

No início do último mês de junho, tive o prazer de colaborar na organização e realização do ReAnimate, uma summer school sobre retrogaming que reuniu profissionais das mais diferentes disciplinas de game studies na Concordia University em Montreal, Canadá. Foram cinco dias de apresentações e debates incríveis sobre tópicos como história dos computadores pessoais, desenvolvimento de vídeo games antigos e atuais e relações entre vídeo games, cultura e sociedade.

Nesta série de posts em duas partes, quero compartilhar com vocês as apresentações que assisti durante o ReAnimate e os principais tópicos e reflexões trazidas por cada uma delas. Aproveito também a oportunidade para deixar meu agradecimento a Dr. Yann-Gael Guéhéneuc, Dr. Fabio Petrillo, Dr. Carl Therrien e Dr. Cristiano Politowski, por terem idealizado e organizado este evento único que contou também com workshops de programação em AMOS BASIC e um torneio de retrogames. Afinal, quando o assunto são vídeo games, não podemos esquecer que a diversão deve estar em primeiro lugar.

P.S: Eu não assisti todas as apresentações do ReAnimate, portanto vou me limitar a descrever as que assisti. Você pode ver a lista completa de apresentações, apresentadores e os slides em formato PDF no site oficial do ReAnimate.

A Influência do Amiga na Computação Pessoal — Jimmy Maher

Na manhã da segunda-feira, 10/07, Jimmy Maher fez a primeira apresentação do evento, durante qual compartilhou conosco várias anedotas de sua juventude nos EUA nos anos 80, quando descobriu sua paixão pelos computadores e pelo entretenimento digital que o levariam 30 anos mais tarde a escrever o blog The Digital Antiquarian e o livro The Future Was Here: The Commodore Amiga. Na obra, ele fala sobre como o Commodore Amiga esteva muito à frente de seu tempo, a ponto de bater de frente em termos de tecnologia com gigantes da época como o “grande irmão” IBM:

Muito tempo atrás, em 1985, computadores pessoais vinham em duas categorias: as máquinas infantis e amigáveis utilizadas para diversão (produzidas por Atari e Commodore, por exemplo) e as caixas adultas, beges e chatas utilizadas no meio comercial (produzidas pela IBM). (…) Maher argumenta que a capacidade do Amiga de armazenar e exibir fotografias em cores, manipular vídeo e reproduzir gravações de som reais foi a semente do futuro digital: câmeras digitais, Photoshop, MP3 players e até mesmo YouTube, Flickr e a blogosfera.

Posando para uma foto com um Commodore Amiga 1000, lançado em 1985. Fonte: arquivo pessoal.

Mas talvez você esteja pensando: “se esse computador é tão influente assim, como eu nunca ouvi falar dele?”. Bom, o Amiga acabou não fazendo muito barulho no Brasil por um motivo: reserva de mercado. Nos anos 80, a ditadura militar proibia as importações de computadores para fomentar o mercado interno, assunto que já abordei em detalhes em um outro post alguns anos atrás. Sendo assim, outros computadores acabaram marcando época em terras brasileiras, como o Expert, da linha MSX, fabricado pela Gradiente. Embora nunca tenha tido a oportunidade de ver um deles no Brasil, tive o privilégio de chegar pertinho de um Amiga durante o ReAnimate (foto acima) e até programar em AMOS BASIC através do emulador Amiga Forever (vou contar mais detalhes em um post separado).

A Persistente Cena Dev do Game Boy Advance — Alex Custodio

Apresentação de Alex Custodio no dia 10 de julho. Fonte: arquivo do ReAnimate.

Na tarde da segunda-feira, 10/07, Alex Custodio falou sobre a cena de desenvolvimento de jogos para o Game Boy Advance, vídeo game portátil da Nintendo do qual ela trata no livro Who Are You? Nintendo’s Game Boy Advance Platform. Lançado em 2002, o Game Boy criou uma legião de fãs e tornou-se um símbolo do início da era digital. Mais de 20 anos após seu lançamento, a plataforma ainda conserva uma comunidade ativa e dedicada a criar novos jogos, emuladores e ferramentas. A Nintendo é bem conhecida por manter suas tecnologias fechadas a sete chaves e até mesmo processar fãs que se utilizam dela para fins não-lucrativos, sendo assim, a criação de emuladores como o mGBA ou Visual Boy não podem ser descritos como outra coisa senão um trabalho de amor.

Contudo, esse amor é tão forte que às vezes dá lugar a uma competição apaixonada. Como explicou Alex, embora a comunidade de desenvolvimento do Game Boy seja formada quase inteiramente por hobbystas, muitos deles são desenvolvedores profissionais com vasta experiência na indústria de vídeo games, e que veem esta cena como um espaço para exibir suas habilidades de programação e se autoafirmar perante outros desenvolvedores. Isso acaba dando origem a um “elitismo geek” na comunidade, que segundo Alex, “exclui pessoas que historicamente não tiveram o mesmo acesso [à tecnologia]”.

Em contraste, a comunidade do Game Boy tem se democratizado cada vez mais através da criação de novas ferramentas de desenvolvimento. Uma prova disso é a GB Studio, uma game engine que permite a criação de jogos de Game Boy através de uma interface visual que pode ser utilizada mesmo por pessoas sem conhecimento de programação. Achei a GB Studio muito interessante, pois elanão apenas torna o desenvolvimento de jogos mais inclusivo, mas também é uma forma de conservar e continuar a história do Game Boy como plataforma.

Como pesquisador de game engines, não pude deixar de perguntar à Alex o que ela acha que podemos fazer para criar game engines que agradem os desenvolvedores hardcore, mas, ao mesmo tempo, sem espantar os desenvolvedores que estão dando seus primeiros passos no desenvolvimento de jogos. “Acho que não podemos deixar todos felizes”, ela respondeu. Segundo ela, é importante desenvolver ferramentas com um público em mente, e refiná-las de acordo com as necessidades deste.

As Aventuras de um Game Dev nos Anos 80 e 90 — Chris Gibbs

Artigo sobre o jogo Log Hop na revista ZX Computing, 1984. Fonte: apresentação de Chris Gibbs.

Na tarde da segunda-feira, 10/07, Chris Gibbs nos levou para uma viagem no tempo contando sobre sua trajetória como produtor e designer de jogos na Inglaterra. Sua história começou nos anos 80, quando teve seu primeiro contato com computadores populares na época, tais como o ZX Spectrum. Ele começou a aprender a linguagem BASIC por meio de livros, revistas e um clube de programação que existia na escola em que estudava. Foi nessa época que ele criou Log Hop, seu primeiro jogo que foi publicado na revista ZX Computing em 1984 (foto acima).

Três anos depois, em 1987, Chris e mais quatro colegas de faculdade fundaram a Attention to Detail na cidade de Hatton, a 160 km de Londres. Um dos primeiros projetos da empresa foi um port de Super Sprint, um jogo de corrida arcade, para o computador Atari ST. Este projeto já começou com um grande obstáculo: a empresa que encomendou o port não lhes deu acesso ao código-fonte da versão de arcade. Sendo assim, o jeito foi ir ao arcade mais próximo para fotografar as telas do jogo e gravar as músicas e efeitos sonoros em uma fita cassete. A partir destas referências, Chris e seus colegas re-criaram o jogo no Atari ST em aproximadamente três meses.

Nas décadas de 1990 e 2000, a Attention to Detail cresceu e desenvolveu projetos que alcançaram relativo sucesso, por exemplo, LEGO Racers 2 (2001) e os jogos oficiais das olimpíadas de Sydney (2000) e olimpíadas de inverno de Salt Lake City (2002). Em 2003, a empresa chegou ao fim e Chris então levou sua expertise a outras gigantes dos games, como a Electronic Arts, onde trabalhou como produtor executivo em séries consagradas como Battlefield e FIFA. Atualmente, Chris trabalha como consultor de gamificação e simulação urbana no Next-Generation Cities Institute da Concordia University, em Montreal. Tenho o privilégio de trabalhar sob a supervisão dele no Tools4Cities, um dos projetos do instituto.

Apresentação de Chris Gibbs no dia 10 de julho, primeiro dia de evento. Fonte: arquivo do ReAnimate.

Ao final da apresentação, perguntei a Chris se ele achava que sua transição de game designer a gestor/produtor seria algo natural para qualquer desenvolvedor de jogos. Ele respondeu que não, pois um cargo de gestão demanda várias competências — comunicação, por exemplo — que nem toda pessoa em um cargo técnico possui. Para tornar-se gestor é preciso, acima de tudo, vontade de aprender e se adaptar às responsabilidades que a posição traz.

Fim da Parte 1

Este o fim da parte 1 da minha cobertura do ReAnimate 2024! Espero que você tenha gostado. A parte 2 você pode ler aqui.

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Gabriel Ullmann

Pesquisador de Engenharia de Software, sempre garimpando por coisas interessantes no código de video games e apps em geral. Atualmente em Montreal, Canada.