Checkpoint: 1 ano em Montreal

Gabriel Ullmann
6 min readDec 14, 2022

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Rua do bairro Ville-Marie, Montreal, 14 mai. 2022. Arquivo pessoal.

No final do ano passado falei que estaria embarcando para uma nova jornada em Montreal, no Canadá. Desde então participei de 3 conferências, me mudei 2 vezes, estudei e dei aulas em Montreal, viajei à trabalho para Lille (França) e Bremen (Alemanha), voltei pra Montreal pra estudar e fazer minhas provas finais. Enfim, é tanta coisa que não caberia em um post.

Mas eu não me preocupo em detalhar tudo isso, afinal, eu não sou o protagonista destes textos semestrais. Pelo contrário, escrevo estes checkpoints com a intenção de mostrar como é a vida em Montreal a partir do ponto de vista de pessoas vindas do mundo inteiro que encontrei por aqui. Enquanto no post passado falei sobre trabalho e estudo, dessa vez o assunto principal será “mudança”, abordado sob 3 pontos de vista: mudança de endereço, de governo e… a esperança de mudança.

Uma cidade de inquilinos

No Québec, os contratos de aluguel terminam no meio do ano por razões históricas e meteorológicas: julho é verão no hemisfério norte, mês ensolarado e portanto perfeito para fazer mudança (afinal, carregar móveis durante uma nevasca não é uma experiência muito agradável). Dois meses depois, em setembro, ocorre a volta às aulas nas universidades. Nesse meio tempo, estudantes do mundo inteiro atravessam Montreal procurando um lar para os meses (ou anos) vindouros.

O lugar onde essa busca começa para a maioria é o Facebook. Seja no Marketplace ou em grupos de estudantes, um termo aparece por todo lado: cession de bail (algo como “repasse de aluguel”, em francês). Funciona assim: quando alguém quer se mudar, mas ainda tem um contrato vigente, pode repassá-lo para outra pessoa interessada e então evitar uma multa recisória. Foi através de repasse que peguei o apartamento para onde me mudei em janeiro. Depois de me mudar para outro ap em julho, a situação se inverteu: em setembro, fui eu quem decidi repassar meu contrato.

Mas por quê? Bom, foi porque em setembro encontrei um lugar mais calmo, barato e bem mobiliado pra morar, e de quebra com a oportunidade de morar com outros dois estudantes-pesquisadores como eu. Porém, o processo de repassar meu contrato vigente na época não foi fácil. Apesar de ter anunciado diversas vezes no Facebook, ter recebido centenas de mensagens, e após isso, dezenas de visitas, levei quase 1 mês para encontrar alguém a fim de fechar negócio — o número de pessoas que entra em contato mas depois desiste e desaparace é inacreditável. Mas no fim a correria deu resultado, estou feliz no meu novo ap e é isso que importa.

La vie à brésilienne

Bandeira do Brasil no bairro Hochelaga-Maisonneuve, Montreal, 04 dec. 2022. Arquivo pessoal.

Após escolher um lugar para morar, chegou o momento de escolher algo ainda mais importante: quem governa o Brasil pelos próximos 4 anos. Não se preocupe, não vou fazer campanha para nenhum candidato aqui, mas sim contar as histórias de algumas das pessoas incríveis que encontrei enquanto esperava por 4 horas na fila do Dawson College, único local de votação em Montreal e que infelizmente foi mal organizado para receber o pleito.

Em meio à fila que serpenteava pelos corredores da faculdade, puxei assunto com vários brasileiros e perguntei a eles como haviam chegado em Montreal. Embora os motivos sejam diversos, a pedra no sapato de quem chega é sempre a mesma: o francês. Uma moça me contou que apesar de ter estudado muito para a prova de proficiência — requisito para a residência permanente no Québec — não conseguiu conter o choro na hora da avaliação de conversação e por pouco não reprovou. Essa história é um lembrete de que tentar a vida em outro país nem sempre é um mar de rosas: há pressão no bolso, no corpo, e também na mente.

E enquanto os imigrantes se viram em duas, três ou mais línguas, a população local nem sempre faz o mesmo esforço. Vários brasileiros me disseram ter trabalhado em empresas onde gerentes e diretores, em sua maioria originários do Québec, falavam apenas francês. Felizmente, essa não é a minha realidade, visto que trabalho em um ambiente acadêmico onde o inglês é a língua franca. Isso não impede, é claro, que eu fale português com meus colegas brasileiros. Em uma sociedade multicultural como a canadense, penso que abraçar as vantagens trazidas pela diversidade linguística é muito melhor do que rejeitá-las.

Contudo, superado o desafio linguístico inicial, a maioria dos brasileiros com quem conversei se disse feliz no Québec. Todos estão empregados, focando na criação dos filhos e de olho na casa própria. E além das histórias, a fila teve um pouco de tudo: casal brigando, criança chorando e muita gente com camisa de time — Flamengo e seleção brasileira foram as mais populares. Enquanto muitos desistiram do voto pelo caminho, muitos outros seguraram a barra até o fim e alguns poucos fizeram até a gentileza de distribuir água para os sedentos na fila. Os nomes se perderam na memória, mas deixo a esses simpáticos compatriotas meu muito obrigado. Foi divertido votar com vocês!

Sobre a esperança

Capa do jornal The Link, publicado pela Concordia University, Montreal, 12 out. 2022. Arquivo pessoal.

Já conversei com pessoas do mundo todo e quando digo que sou brasileiro não é incomum que me perguntem algo sobre futebol. Nesses momentos eu me enrolo todo, já que acompanho pouco o futebol internacional e as ligas europeias. Porém, eu adoro Copa do Mundo então isso sempre rende um bom papo. Meses atrás, por exemplo, tive o seguinte diálogo com um colega iraniano:

- Deve ser bom ver o seu próprio país jogar na copa. — Ele disse, um pouco triste.

- Mas o Irã vai jogar também esse ano, não? — Falei, tentando animá-lo.

- Sim, mas a diferença é que vocês [do Brasil] tem alguma chance de ganhar. Deve ser bom ter pelo menos a esperança de que o seu país possa ganhar a copa.

Apesar de a esperança (ou a falta dela) não ter ajudado nem Brasil nem Irã na Copa, ela levou às ruas milhões de iranianos indignados pela morte de Mahsa Amini. A moça, uma estudante de 22 anos, foi agredida e morta pela polícia no Irã por não utilizar o hijab (véu islâmico). O uso da vestimenta é lei no país desde 1979, quando um governo fundamentalista islâmico assumiu o poder.

Tenho vários colegas e amigos iranianos em Montreal e acompanhei de perto sua consternação. Todos perderam contato com suas famílias após o governo do Irã bloquear a Internet para reprimir os protestos. Mesmo nos raros momentos em que a conexão era reestabelecida, o uso de VPNs e diferentes apps de mensagens era necessário para driblar a censura e vigilância do governo.

E mesmo para a minoria que tem condições financeiras, deixar o Irã não é tarefa fácil. Os embargos internacionais contra o país tornam mais lenta e burocrática a imigração para a América do Norte e Europa. Ouvi histórias de pessoas que tiveram que aguardar 1 ano para terem seu visto de estudante aprovado no Canadá. Normalmente, esse processo demora apenas alguns meses.

Embora essa situação ainda esteja longe de mudar, os protestos ao redor do mundo deixam claro que os iranianos tem, acima de tudo, esperança no futuro de seu país. Que a luta deles pela democracia e pelos direitos das mulheres sirva de exemplo a todos nós. Cada nação e cada povo do mundo tem seus próprios desafios a superar, e eu espero que em 2023 possamos juntos continuar conversando, trabalhando e agindo para superá-los.

Considerações finais

No post sobre minha viagem para a IFIP-ICEC em Bremen já registrei meus agradecimentos a meus orientadores pelas oportunidades, ensinamentos e pela contínua confiança. Sendo assim, quero utilizar esse espaço pra agradecer também:

  • Aos colegas de laboratório, com quem tomei incontáveis cafés e que me ajudaram, cada um à sua maneira, desde o primeiro dia que cheguei em Montreal.
  • À meus familiares e amigos no Brasil, que apesar da distância não me esqueceram, sofreram comigo nos jogos da Copa e não deixaram de me mandar as melhores figurinhas do WhatsApp.
  • Aos meus alunos e também aos meus professores, por todas as oportunidades de ensinar e aprender.
  • Às pessoas de todos os cantos do planeta que encontrei em Lille, Bremen e nos eventos da Concordia em Montreal, seja para bater uma bola no Parc Angrignon, falar em francês errado ou simplesmente dar umas boas risadas.

E apesar de parecer um pouco, isso não é uma despedida! Muito pelo contrário: um novo ano se inicia logo mais, e espero poder encontrar muitas outras pessoas incríveis, aprender com suas histórias e compartilhá-las com vocês.

Joyeuses fêtes / Happy holidays / Boas festas!

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Gabriel Ullmann

Pesquisador de Engenharia de Software, sempre garimpando por coisas interessantes no código de video games e apps em geral. Atualmente em Montreal, Canada.