O que rolou no ReAnimate 2024 (parte 2)

Gabriel Ullmann
8 min readAug 5, 2024

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Um Macintosh SE exposto ao lado de outros retrocomputadores durante o ReAnimate. Fonte: arquivo pessoal.

No início do último mês de junho, tive o prazer de colaborar na organização e realização do ReAnimate, uma summer school sobre retrogaming que reuniu profissionais das mais diferentes disciplinas de game studies na Concordia University em Montreal, Canadá. Neste segundo post, sigo compartilhando com vocês as apresentações que assisti durante o ReAnimate e os principais tópicos e reflexões trazidas por cada uma delas. Você pode ler a parte 1 aqui.

Archeogaming: Desenterrando Artefatos Digitais — Dr. John Aycock

Dr. Aycock apresenta um Atari 2600 para a plateia. Fonte: arquivo pessoal.

Na quarta-feira, 12/07, Dr. John Aycock falou sobre uma área de pesquisa não muito conhecida do público, e considerada exótica até mesmo por acadêmicos que estudam video games: o archeogaming. Assim como Indiana Jones junta peças de antigos artefatos enterrados, Dr. Aycock junta peças de artefatos digitais — como o código-fonte de jogos de Atari 2600— com o objetivo de entender não apenas como eles foram criados, mas também como eles se relacionam uns com os outros.

Por exemplo, no artigo Entombed: An archaeological examination of an Atari 2600 game, Dr. Aycock descreve como realizou a engenharia reversa de jogos de Atari e os analisou para identificar trechos de código compartilhados entre diferentes jogos. Através desta análise, ele descobriu que jogos da empresa US Games lançados no início dos anos 80, como Entombed e o famoso Q*bert, compartilham o mesmo gerador de números pseudo-aleatórios. Em Entombed, por exemplo, esse gerador era utilizado para construir os labirintos que deviam ser percorridos continuamente pelo jogador (foto abaixo).

Exemplo de labirinto do jogo Entombed, de 1982. Fonte: artigo de John Aycock e Tara Copplestone.

Como desenvolvedor, achei este trabalho impressionante. Se muitas vezes temos dificuldade de encontrar padrões em uma base de código aberta e moderna, imagine o quão difícil é fazer o mesmo em um base legada, fechada, sem qualquer documentação ou ferramentas pré-prontas para análise. E para buscar saber ainda mais sobre as origens do gerador de números aleatórios, Dr. Aycock entrevistou Paul Newell e Steve Sidley, desenvolvedores de Entombed. Os relatos bem humorados da dupla estão também documentados no artigo de Dr. Aycock sobre Entombed:

Como Newell nos conta, ‘Duncan [outro desenvolvedor] e eu saímos para tomar algumas cervejas e acabamos refletindo sobre a possibilidade de criar um labirinto infinito que sempre tivesse uma solução’. (…) As memórias de Sidley sobre o algoritmo foram bem mais coloridas: ‘A versão básica da rotina de geração de labirintos foi escrita por um stoner que já tinha saído [da US Games]. Eu o contatei para tentar entender o que o algoritmo fazia’. (…) Independente da versão dos fatos que realmente ocorreu, parece correto afirmar que um certo grau de intoxicação esteve envolvido no desenvolvimento do algoritmo de labirintos.

Unindo Técnica e Cultura nos Vídeo Games — Dra. Rilla Khaled e Dr. Darren Wershler

Dr. Wershler (esquerda) e Dra. Khaled (direita) durante sua aparesentação no centro de pesquisa TAG (Technoculture, Art and Games) da Concordia University. Fonte: arquivos do ReAnimate.

Na quinta-feira, 13/07, a Dra. Rilla Khaled e o Dr. Darren Wershler fizeram uma apresentação conjunta intitulada “The Knot: Sitatuing Old Game” (“O nó: situando jogos antigos”, em uma tradução livre). Em minha opinião, essa foi uma das apresentações mais filosóficas e diversas do ReAnimate, discutindo não apenas aspectos técnicos dos vídeo games mas também, de maneira mais ampla, o impacto deles em nosso entendimento do mundo e a relação entre três aspectos dos games: técnica, cultura e materialidade. Como explica um dos primeiros slides da apresentação:

Como um nó triplo, estes aspectos estão profundamente inter-relacionados: a técnica produz tanto o sujeito empregando a técnica quanto o objeto no qual ela está sendo empregada; da cultura emerge nosso entendimento do que algo é e do que podemos fazer com ele; a materialidade define as condições para nossa experiência incorporada das coisas, e o que elas são. Quando trabalhamos com jogos antigos, podemos começar a desamarrar este nó em qualquer um destes pontos.

Para exemplificar a relação entre técnica e cultura, a Dra. Khaled falou sobre o jogo “Smoke?” (foto abaixo), que ela desenvolveu durante sua tese de doutorado na Universidade de Wellington, Nova Zelândia, em 2008. Em “Smoke?”, o jogador controla um personagem que está tentando parar de fumar. Através das interações envolvendo o personagem no mundo virtual, o jogador pode aprender estratégias úteis para lidar com a abstinência de nicotina no mundo real.

Captura de tela do jogo “Smoke?”. Fonte: tese da Dra. Rilla Khaled.

Como parte de um experimento, Dra. Khaled criou duas versões de “Smoke?”: uma mais adaptada ao estilo de vida de neozelandeses de descendência europeia, e outra ao estilo de vida de neozelandeses de descendência Maori, povo indígena que habita a Nova Zelândia desde tempos imemoriais. Após conduzir testes e entrevistas com jogadores dos dois grupos, ela concluiu que o uso de referências culturais Maoris ou européias nos gráficos e diálogos do jogo ajudou os respectivos jogadores a se conectarem mais com o jogo em cada caso. Contudo, independente da origem cultural, o jogo foi eficaz no incentivo a hábitos anti-tabagistas.

No aspecto da materialidade, Dr. Wershler nos falou sobre seu trabalho com o Residual Media Depot (RMD), uma coleção de vídeo games e acessórios relacionados do período de 1972 a 2002. A coleção tem como propósito não apenas preservar a memória material dos vídeo games, mas também permitir que pesquisadores estudem como o hardware para jogos era produzido naquela época e como adaptá-lo a padrões atuais (por exemplo, criando adaptadores HDMI que permitam a conexão de consoles dos anos 80 em TVs modernas).

Dra. Khaled e Dr. Wershler fizeram também uma crítica ao crescente uso da gamificação em aplicações comerciais. Embora muitos pensem que a gamificação é uma panaceia capaz de magicamente tornar qualquer app mais cativante, divertido e educativo, é preciso ter em mente que se não houver incentivo para que o jogador reflita sobre o que está jogando e conecte o jogo com sua realidade cultural e social, a mensagem que o game está tentando passar não será internalizada. Como um dos slides da apresentação resume muito bem:

Aprender através de um jogo não é como administrar um medicamento em comprimidos. É preciso mediação, discussão e reflexão para que a ideia cole.

Olhando para o Passado, Presente e Futuro das Game Engines — Carlos Pinto Gomez

Carlos Pinto Gomez explica o código de Space Invaders em linguagem Assembly. Fonte: arquivo pessoal.

No último dia de evento, sexta-feira, 14/07, Carlos Pinto Gomez fechou o ReAnimate falando sobre a história do desenvolvimento de jogos, as limitações técnicas existentes em diferentes épocas e como diferentes jogos aplicaram estratégias para superar estas barreiras. Um exemplo clássico é Doom (1993), um dos primeiros jogos a ser produzido com o uso de uma game engine e que portanto permitiu desenvolvimento rápido, modularizado e facilitou a criação de mods pelos fãs.

Carlos mencionou também a atual diversidade de bibliotecas gráficas, game engines e ferramentas de modelagem 3D. Apesar de facilitarem a criação de jogos de alta qualidade, essas ferramentas têm uma curva de aprendizado longa e interfaces pouco intuitivas. Consequentemente, os profissionais tendem a se especializar em uma ou duas ferramentas específicas, o que por sua vez se reflete na composição das equipes de produção de vídeo games. Em grandes produções, as equipes são frequentemente formadas por especialistas, e não por generalistas. Por exemplo, há roteiristas, animadores, modeladores 3D, engenheiros de som, game designers, level designers, etc.

Essa realidade extremamente especialista contrasta fortemente com os primórdios da indústria de vídeo games, onde mesmo em jogos de grandes empresas um profissional podia tomar conta de diversas partes da produção. Como explicou Carlos, o criador do clássico Space Invaders (Tomohiro Nishikado) colaborou na criação não apenas do game design e do software mas também do hardware do jogo, que na época foi criado para rodar em arcades.

Exemplo de uso do Unity Muse, chatbot alimentado por IA. Fonte: site do Unity Muse.

Ao final da apresentação, perguntei a Gomez o que ele acha que os desenvolvedores de ferramentas de desenvolvimento de vídeo games podem fazer para diminuir a curva de aprendizado e tornar estas aplicações mais simples de utilizar. Segundo ele, não há bala de prata para este problema, visto que o desenvolvimento de jogos é um domínio multidisciplinar e complexo e, portanto, ninguém é capaz de fazer e saber tudo. Porém, no mundo das game engines, assistentes de IA como o Unity Muse (foto acima) vem surgindo como uma forma de mitigar a complexidade da interface dessas ferramentas, permitindo que o usuário obtenha suporte focado e imediato sem precisar ler dezenas de páginas de documentação, por exemplo.

Considerações finais

A produção de vídeo games me fascina justamente por ser uma área multidisciplinar. Enquanto uns estudam as placas de circuito e códigos que dão vida aos jogos, outros analisam os impactos destes na vida e sociedade humanas. Em eventos como o ReAnimate, temos a oportunidade de unir estas duas “tribos” dos game studies e trocar experiências, o que é muito benéfico não só para o desenvolvimento de jogos, mas também para o desenvolvimento de software de maneira mais ampla. Acho sempre importante lembrar que software é feito por pessoas, e para pessoas. Sendo assim, entender o elemento humano é fundamental.

Além disso, ao aplicarmos nossos conhecimentos ao estudo de jogos e consoles antigos, temos a oportunidade não apenas de entender o passado, mas também de admirar a velocidade estonteante na qual avançamos. Enquanto prédios e pontes ainda são construídos hoje utilizando teorias e conceitos descobertos há séculos, vídeo games são desenvolvidos hoje de maneira muito diferente do que eram 20 anos atrás.

Finalmente, o entendimento do passado e do presente nos permite construir um futuro para a produção e pesquisa de vídeo games. Por exemplo, vários apresentadores nos falaram durante o ReAnimate de tendências interessantes nas quais vale a pena ficar ligado. Alex Custodio, por exemplo, apontou a crescente democratização do desenvolvimento de games e retrogames através de novas game engines, Dr. Khaled e Dr. Wershler nos falaram do crescimento da gamificação e Carlos Pinto Gomez, do uso de IA para alavancar o aprendizado de desenvolvedores de jogos. A eles, e aos demais apresentadores que não citei em meus posts, deixo meus sinceros agradecimentos.

E assim termino minha cobertura do ReAnimate 2024. Espero que você tenha gostado, e sinta-se à vontade para deixar comentários e sugestões aqui em minha página do Medium. Até ano que vem!

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Gabriel Ullmann

Pesquisador de Engenharia de Software, sempre garimpando por coisas interessantes no código de video games e apps em geral. Atualmente em Montreal, Canada.