Checkpoint: 2 anos em Montreal

Gabriel Ullmann
6 min readDec 18, 2023

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Pôr do sol no Le jardin de la Pépinière, bairro Hochelaga-Maisonneuve. 23 Set 2023. Arquivo pessoal.

Poucas semanas atrás, defendi minha dissertação de mestrado em Engenharia de Software na Concordia University, e tudo correu bem! Agora que meus estudos estão concluídos, chegou a hora de fazer planos para os próximos anos. Porém, agora volta a martelar na minha cabeça uma questão que ouço desde que me mudei para o Canadá dois anos atrás: “Por que Montreal?”. É uma cidade cara, gelada, em uma região francófona… Por que ficar nela? Será que não está na hora de se mudar?

Eu poderia responder essas perguntas de maneira bem pragmática, porém encontrei outra mais divertida em um livro chamado The unknown unknown: bookshops and the delight of not getting what you wanted (“O desconhecido desconhecido: livrarias e o prazer de não conseguir o que você queria”), de Mark Forsyth. Na obra, que não tem versão em português, o autor classifica livros em três categorias:

Existem três tipos de livros: aqueles que você já leu, aqueles que você sabe que não leu, e os outros: aqueles que você não sabe que não conhece.

Mesmo antes de me mudar para o Canadá, eu já sabia como seriam certas coisas — maravilhas como ver a neve, ou maldições como ter que quase diariamente removê-la da soleira da porta. Outras coisas eu não sabia bem como seriam, e acabei aprendendo — por exemplo, o dia a dia de trabalho como pesquisador. Por fim, haviam coisas que eu não sabia que não sabia, e descobrí-las me fez amar Montreal.

Para fechar a série que comecei em 2022, falo sobre como um restaurante, um bar e um grupo de pessoas aleatórias que conheci neste verão ajudou a definir os meus próximos passos em Montreal. Também deixo uma pergunta para você, leitor(a): o que você não sabe que não sabe?

The People’s Potato

O refeitório dos estudantes em uma manhã calma; ao fundo, o “A” anarquista cor-de-rosa marca a entrada do People’s Potato. 12 Dez 2023. Arquivo pessoal.

Foi no inverno passado que descobri o People’s Potato, um restaurante estilo “bandejão” dentro da Concordia University que serve almoço gratuito todas as semanas de segunda à quinta. Nessa época de alta inflação em que vivemos, o local é a única opção de almoço acessível para muitas pessoas, em especial estudantes. Comecei a frequentar o People’s Potato em março deste ano, e não parei desde então. Como é de se esperar em um bandejão, a fila é longa, mas a qualidade da comida faz a espera valer a pena. O cardápio é vegatariano e muda todos os dias, apresentando opções como saladas de alface e tomate, sopa de abóbora e lentilhas, borscht e quinoa, todos preparados com muito carinho por voluntários.

Outra coisa que me agrada é a atmosfera do refeitório do Potato (na foto acima), que embora seja um pouco caótica é também bem divertida. Nesse ambiente, tive a oportunidade de almoçar com gente do mundo todo e ouvi-los falar dos mais diversos assuntos — como política internacional, tango e até museus mal-assombrados. E foi assim que, pulando de mesa em mesa e de conversa em conversa acabei ouvindo falar de um evento de conversação multi-idioma chamado Mundolingo. Como estava precisando melhorar meu francês e estava buscando por opções gratuitas, resolvi experimentar.

Mundolingo

Com amigos no Mundolingo. Out 2023. Página oficial do Mundolingo no Facebook.

Todas as quartas-feiras às 19h, o Clébard, bar que fica no coração do charmoso bairro de Plateau Mont-Royal, recebe o Mundolingo. A premissa é simples: você entra, vai até a mesa da recepção, e diz quais idiomas sabe falar e quais gostaria de praticar. Você então recebe adesivos de bandeiras correspondentes a esses idiomas para colar na roupa (na foto acima, Brasil, Québec e Canadá). Dessa forma, as pessoas sabem em que idiomas podem falar com você, e vice-versa.

Da primeira vez que participei, cheguei um tarde e tive que disputar espaço ao redor do balcão lotado para pedir uma cerveja. Depois de ser atendido, comecei a andar de mesa em mesa e puxar papo com uma porção de gente. Todos falavam um francês lento e quebrado, igual ao meu. Nada melhor do que se sentir à vontade! Depois de conversar com um estudante nicaraguense e uma moça bengali, não demorei a encontrar duas brasileiras. Uma estava de passagem para visitar o filho, a outra tinha acabado de se mudar de Manitoba e caído, meio de susto, no meio da francofonia (ou será francofolia?).

Encontrei também um montrealense da gema, que naturalmente falava um francês excelente e que fez a gentileza de ficar por um tempo batendo um papo com a panelinha brasileira. Quando perguntei em que parte de Montreal ele tinha nascido, ele respondeu, em tom bem humorado:

- Ma famille et moi, on a fait beaucoup le sport national. Et c’est pas le hockey! (Minha família e eu praticamos muito o esporte nacional. E não é hockey!)

- Alors, c’est quoi? (É qual então?)

- Le démenagement. (Fazer mudança.)

Eu poderia passar horas falando dos amigos que fiz e das historias que ouvi no Mundolingo. Porém, para fins desse checkpoint, acho que o que descrevi até aqui já é suficiente para responder a pergunta lá do início do texto: Por que Montreal? Porque Montreal é assim como uma sopa de bandejão, uma mistura das mais estranhas e também das mais saborosas. Mesmo com aparência duvidosa, ela tem aquele cheirinho e sabor que fazem todo mundo se sentir em casa, ainda que por breves momentos. Uma sopa que pode parecer ordinária, mas que guarda muita coisa interessante para quem decide mergulhar no seu caldo.

Há quem compare as pessoas do mundo inteiro que vem à Montreal com moscas na sopa. Eu prefiro pensar que elas são os ingredientes que a tornam única.

Considerações finais

Analisando a temática principal de cada um dos checkpoints nesses últimos dois anos, percebi que, meio que por acidente, eles formam uma progressão interessante:

Fazer algo, mudar, aprender com a mudança, se perguntar como melhorar, e então repetir o processo: esse é o ciclo da vida, e também o da ciência. É esse ciclo que pretendo repetir mais uma vez no ano que vem. Desejo um ano cheio de ciclos para você também! Atualmente estou encaminhando meu visto de trabalho, e se tudo der certo estarei trabalhando em breve. Em paralelo, sigo envolvido em projetos com colegas pesquisadores e também aproveitando o fim de ano com amigos e família.

E quanto aos checkpoints? Eles ainda vão aparecer por aqui, mas ainda não sei com que frequência, nem em que formato. O que eu sei é que adoro registrar e contar essas pequenas histórias. Afinal, são elas que compõe nossas vidas, pedacinho por pedacinho, como em um mosaico. E é justamente nos pedacinhos que parecem mais ordinários e insignificantes que muitas vezes encontramos o que nos dá mais realização e motivação para seguir em frente. Como escreve Mark Forsyth:

Minha visita perfeita a uma livraria, tão perfeita que não é deste mundo, seria da seguinte forma: andando por uma cidade que não conheço, avisto a livraria ao fundo de uma rua estreita. Entro e encontro um livro. Apenas um. Ele está sobre uma mesa. Ele tem uma capa simples, na qual mal posso ler o título. Decido comprá-lo, e ele me revela todos os segredos do universo.

Merci beaucoup / Thank you very much / Muito obrigado!

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Gabriel Ullmann

Pesquisador de Engenharia de Software, sempre garimpando por coisas interessantes no código de video games e apps em geral. Atualmente em Montreal, Canada.